Já se passaram 300 anos desde que as últimas naves deixaram a Terra. A expansão do Sol chegou a um ponto insuportável e somente os menos afortunados e piratas de apartamentos permaneciam. Este planeta que tanto nos ajudou entrou em seu período de decadência a partir do século XX. Seu triste fim já era conhecido desde muito tempo. A terrível transformação do Sol em uma anã branca finalmente estava diante de nossos olhos.
O povo que ficou falava aterrorizado dos redemoinhos gigantes de pó que subiam as céus a perder de vista. Existiam até histórias de crianças que foram tragadas para esses monstros de ar e pó ao brincar com páraquedas caseiros feitos de plástico e fios.
E o que eu vim fazer aqui nesta Terra desolada e castigada por altas temperaturas e ventos praticamente inexistentes? Cento e vinte afortunados, dos quais eu e mais uma dezena de amigos do que era antigamente Portugal tivemos a oportunidade de fazer parte do último campeonato de voo livre da Terra.
Todos os meus equipamentos estavam guardados na minha pequena mochila. Finalmente o pessoal da Novatech conseguiu desenvolver um equipamento completo que não pesava mais do que dois quilos. Eu já estava farto de ter que carregar duas mochilas, sendo uma só para guardar a minha roupa de voo. De parecido com o pré-histórico parapente, desenvolvido nos anos 90, não restou nem o nome. A Asa Delta já era coisa do passado à muitos séculos. A mais de 200 anos os dois esportes tinham-se fundido quando foi foi inventado a roupa de voo.
A roupa nada mais era que um fato de voo que envolvia totalmente o corpo do piloto, com asas de comprimento variável que podiam ser estendidas ou recolhidas a partir dos braços através de controle braço-motor. Como o material da roupa era muito leve e extremamente maleável, as possibilidades aerodinâmicas eram praticamente ilimitadas.
O controle braço-motor é efectuado basicamente como uma extensão do próprio braço do piloto. Ao estender os braços as "asas" acompanham os movimentos executados e finalmente consegue-se as tão almejadas asas com área variável.
O aspecto geral da roupa ao vê-la em voo é muito parecido com um condor, extinto à milhares de anos. Estas aves povoaram o imaginário dos praticantes do voo livre do século XX pela sua total desenvolvura nos ares. Era raro ver um condor a bater as asas. Se isso acontecesse pode apostar que o dia de voo seria mau. No fato de voo até as pontas das asas foram inspiradas nas dos condores.
Deixou de ser permitido qualquer tipo de equipamento electrónico no voo livre. Também, com estes fatos de voo a possibilitarem planeios de 80/1, quem precisa de variómetro? Mesmo os famosos óculos térmicos, tão populares a partir do ano de 2009, tinham sido abolidos das competições oficiais à mais de 300 anos. Estes óculos eram usados somente para alunos em instrução para familiarizá-los com o voo térmico. Mas o grande salto tecnológico não se deu somente nas roupas de v0o...
A engenharia genética evoluiu muito e finalmente chegou aos desporots aéreos. Depois que o gene do condor foi todo mapeado, foi fácil descobrir o que o fazia tão poderoso nos céus. Anos de estudo levantaram alguns dos dons do condor. Ouvido altamente apurado para baixas frequências: as térmicas podiam ser ouvidas. Alta sensibilidade para variações de pressão: variómetro interno. Visão infra-vermelho: através de pequenas variações de temperaturas as térmicas podiam ser vistas. A máquina perfeita de voar estava desvendada.
Foi no campeonato mundial de 2040 que surgiram as primeiras experiências envolvendo pilotos de alto nível com material genético alterado a partir do condor. As competições tiveram um salto enorme. Esses pilotos que se submeteram a alterações genéticas eram imbatíveis!
Em vez de gerar altos protestos, um a um os pilotos começaram a submeter-se ao tratamento genético. Não tanto por querer ganhar as novas competições, mas pelas maravilhas que os "convertidos" falavam. As térmicas eram sempre alcançadas, as transições eram sempre maiores. Muitos falavam que tinham redescoberto o prazer de voar; na verdade todos falavam que aquilo sim era voar.
Foi nesta época que os equipamentos electrónicos foram banidos das competições. Não havia mais razão para usar óculos térmicos, variómetros ou GPS. Para quê usar toda esta parafernália tecnológica se agora eles podiam sentir as térmicas, practicamente "ver" as correntes de ar e saber qual era o melhor lugar para se dirigir para apanahar a melhor ascendência?
Mas toda essa evolução genética tinha um preço a ser pago. Algumas pessoas começaram a desenvolver uma pequena plumagem pelo corpo. Algo lembrando micro-penas. Outros começaram a ter predileção por carnes quase em estado de putrefação.
Já faz 2 anos que me submeti ao tratamento. No início não senti nada.! Pensei que algo tinha corrido mal e até comecei a duvidar de meus outros amigos de voo e das maravilhas que eles falavam. Passaram-se 3 semanas e num dia que não prometia um bom voo comecei a sentir um coisa estranha. Ao descolar comecei a voar para a frente durante uns 5 segundos para ver se encontrava algum local com sustentação. Não encontrei nada. Quando estav prestes a começar a fazer a curva para voltar para a encosta senti uma mudança no ar. Ele parecia ter ficado um pouco mais quente e a cada metro que eu avançava para frente mais ele aquecia. O meu variómetro não marcava nada, mas eu sabia que alguma coisa estava a acontecer ali na frente.
Dez segundos depois senti a pressão do ar que me levava para cima e o variómetro começava a apitar. Era como se tivesse sido a minha primeira térmica. Eu sabia que ela estava ali na frente. Como sabia? Não sei, mas eu tinha a certeza que ela estava lá. Algumas horas depois do voo lembrei-me de ter sentido um aumento de temperatura, será que eu tinha sido "convertido" finalmente?
As semanas foram passando e as mudanças começaram a ficar muito mais visíveis. Mesmo não voando eu sabia onde as térmicas estavam a ser geradas e para onde elas se deslocavam. Isso até me irritava, pois eu estava dentro da cidade e tinha absoluta certeza que se estivesse com a minha roupa de voo chegaria ao meu destino muito mais rapidamente que de carro ou a pé.
No fim de semana começava a minha glória. Eu não era mais um simples mortal. Tinha me tornado finalmente um ser do céus. Eu ainda não era um pássaro, mas já me considerava como um. As 10 horas da manhã eu já podia lançar-me aos céus e ficar a voar por muitas horas a fio. Mesmo que as condições piorassem eu tinha plena consciência disso e voltava a aterrar na descolagem antes que tivesse que obrigatoriamente ir para a aterragem.
Bem, chega de lembranças. O despertador tocou, bati coma cabeça e afinal estava só a sonhar...
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